A onda da pilantropia - continuação
A explosão do terceiro setor criou
outro tipo de ONG: a dos aproveitadores que, na falta de fiscalização, desviam
recursos públicos e enriquecem
Quando o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho,
criou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, no Rio de
Janeiro, em 1993, ajudou a cristalizar a imagem que até hoje persiste das
organizações não-governamentais, as ONGs. No imaginário popular, elas
representam uma trincheira da sociedade civil contra os abusos de governos ou
grandes empresas. Seriam todas campeãs de causas nobres e estariam repletas de
ativistas dedicados e altruístas. Era o caso de Betinho. É o caso de Viviane
Senna, com seu Instituto Ayrton Senna. É o caso de milhares de organizações que
- equivocadas ou não - lutam pelo que acreditam. Mas não é o caso de todas as
ONGs. Longe disso.
Nos anos 90, em decorrência da insuficiência dos
Estados em suprir as necessidades da população, proliferou o que hoje se chama
terceiro setor, formado por entidades privadas dedicadas ao bem público: ONGs,
instituições religiosas, entidades beneficentes etc. Nessa onda, o número de
ONGs cresceu tanto que o acadêmico americano David Korten, ex-professor de
Harvard e referência mundial nessa área, criou uma classificação para elas. As
ONGs da primeira geração, segundo ele, operam com urgências, distribuem
serviços, alimentos e remédios. Dão o peixe. As ONGs da segunda geração se
empenham em fazer com que as comunidades pobres encontrem a solução para os
próprios problemas. Ensinam a pescar. As da terceira geração transitam no campo
das idéias, da formação moral, da cidadania. Elas se propõem a ser motores de
mudanças políticas e sociais.
Korten não previu uma quarta - e indesejável - geração
de ONGs: as "pilantrópicas". São ONGs suspeitas de ser usadas como
laranjas para burlar leis de licitações, desviar recursos, fazer caixa dois de
campanhas eleitorais e propiciar enriquecimento ilícito. São também aquelas
dedicadas a aproveitar reivindicações de minorias para achacar empresas. No Rio
de Janeiro, 12 ONGs são investigadas pelo Ministério Público por convênios
milionários com o governo fluminense. Uma delas, o Centro Brasileiro de Defesa
dos Direitos da Cidadania (CBDDC), que funciona em uma pequena sala de uma
cidade do interior do Estado do Rio, recebeu no ano passado um repasse de R$
105 milhões em recursos públicos.
Reportagens publicadas pelo jornal O Globo
revelaram que algumas dessas instituições são ligadas a empresários que fizeram
doações à pré-campanha à Presidência da República de Anthony Garotinho, marido
da governadora Rosinha Garotinho (PMDB). A ONG recebia dinheiro do governo
Rosinha e ajudava Garotinho. Recentemente, apareceram indícios de que ONGs de
fachada foram usadas pela quadrilha de sanguessugas que desviava recursos do
Orçamento com a venda superfaturada de ambulâncias. As entidades eram usadas
para driblar restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal à transferência de
dinheiro do governo federal para prefeituras inadimplentes.
Por que esse desvirtuamento da sigla ONG? Uma das
razões é que houve uma vertiginosa proliferação das ONGs. Em 2002, ano da
última contagem oficial, havia 276 mil ONGs no Brasil. É uma para cada 600
habitantes. De lá para cá, surgiram em média mais oito ONGs por dia, numa
estimativa baseada apenas nas que entraram com pedidos de parcerias com
governos ou de benefícios tributários. Não entraram na conta os milhares de
ONGs que não se registraram nos órgãos federais.
Essa multiplicação das ONGs não se deve a uma
repentina febre de idealismo. Nos últimos anos, criaram-se condições que
estimularam o crescimento do terceiro setor. No Estado do Rio, por exemplo,
difundiu-se a prática de contratação de funcionários pelo governo estadual por
intermédio de ONGs, para burlar a exigência de concurso público. "É uma
intermediação ilegal", diz João Batista Berthier, do Ministério Público do
Trabalho do Rio. "Mas se tornou tão disseminada e caótica que não temos
estimativas sobre o número de funcionários terceirizados via ONGs."
A esse crescimento não correspondeu o necessário
aumento da fiscalização. "Só o Estado tem poderes de investigar. O cidadão
comum, não", diz a advogada Elisa Larroudé, autora de uma tese de mestrado
pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo sobre ONGs. A fiscalização do
governo federal se limita à verificação do cumprimento de formalidades.
"Atestamos a intenção de trabalhar pelo interesse público, e não se a
organização realmente trabalha", diz José Eduardo Elias Romão, diretor de
Justiça e Classificação do Ministério da Justiça. "É uma loucura. Esse
modelo não combina com o estado democrático de direito."
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74385-6009-420,00.html
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